Nem todos concordam que o direito que temos de comentar deva ser restringido pelo risco de murmurar. Comentar não é o mesmo que murmurar. Há os que conseguem fazer uma coisa sem incorrer na outra. Concordo plenamente. Entretanto, como saber se nosso comentário já deixou de ser mera observação e transformou-se num grotesco gesto de…
Nem todos concordam que o direito que temos de comentar deva ser restringido pelo risco de murmurar. Comentar não é o mesmo que murmurar. Há os que conseguem fazer uma coisa sem incorrer na outra. Concordo plenamente. Entretanto, como saber se nosso comentário já deixou de ser mera observação e transformou-se num grotesco gesto de murmuração?
A narrativa bíblica que descreve o envio do maná e das codornizes ao povo que caminhava no deserto (Êxodo 16) pode nos ajudar a responder essa pergunta. Como já deve ser do conhecimento de muitos, o povo de Israel tinha acabado de sair de um período de quatrocentos anos na terra do Egito. Eles caminhavam rumo a uma nova realidade com muito mais surpresas do que eles podiam imaginar. No momento desse episódio do maná, apenas dois meses tinham se passado, de um percurso que duraria cerca de quarenta anos. Ou seja, eles estavam ainda no início de uma longa história.
Com base na narrativa bíblica mencionada acima, como saber se nossos comentários se tornaram murmuração? Considere, por um instante, os três pontos a seguir e veja se eles podem lhe ajudar a responder o teste da murmuração.
1. Como definimos nossas necessidades básicas?
Todo ser humano tem necessidades básicas que precisam ser supridas. Jesus ponderou sobre isso, certa ocasião, nos seguintes termos: “Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros; contudo, vosso Pai celeste as sustenta. Porventura, não valeis vós muito mais do que as aves?” (Mateus 6.26). Para muitas pessoas hoje, essa resposta de Jesus não leva em consideração os desafios e precariedades do mundo em que vivemos hoje. Será?
O relato do envio do maná pode nos auxiliar nesse sentido. Veja o modo como os israelitas definiram suas necessidades naquele contexto: “Quem nos dera tivéssemos morrido pela mão do SENHOR, na terra do Egito, quando estávamos sentados junto às panelas de carne e comíamos pão a fartar! Pois nos trouxestes a este deserto, para matardes de fome toda esta multidão” (Êxodo 16.3). Há dois pontos que merecem nossa atenção: 1) eles definiram a sua necessidade básica como “pão e carne”, mas não apenas isso; eles queriam pão e carne “ao alcance das mãos e com fartura”. 2) eles preferiam a morte a verem-se privados dessa necessidade, conforme apresentada por eles.
O ponto central que definiu o ato como murmuração não foi pedir comida, mas o modo como a necessidade foi apresentada diante de Moisés e Arão. Ao definir a necessidade básica de forma tão imediatista, os israelitas acabaram incorrendo em murmuração, pois não deixaram espaço para a manifestação da providência diária de Deus. Quem só pede pão tem fome, mas quem pede pão, e prefere a morte quando a entrega não é imediata, tem fome e desgosto com o provedor do pão.
Esse episódio com os israelitas acabou revelando uma verdade curiosa: É mais fácil tirar o povo de dentro do Egito do que tirar o Egito de dentro do povo. Depois de tudo o que Deus já havia feito, incluindo a derrota do exército de faraó no mar vermelho, os israelitas ainda preferiam retornar para o Egito por causa da comida. Isso é murmuração.
2. Como nos relacionamos com o provedor de nossas necessidades básicas?
A segunda pergunta que nos auxilia na definição do que é murmuração tem a ver como nosso relacionamento com o provedor de nossas necessidades básicas. O modo como Deus respondeu à solicitação do povo visava testá-los quanto ao item “relacionamento”. Veja os termos da resposta de Deus: “Eis que vos farei chover do céu pão, e o povo sairá e colherá diariamente a porção para cada dia, para que eu ponha à prova se anda na minha lei ou não. Dar-se-á que, ao sexto dia, prepararão o que colherem; e será o dobro do que colhem cada dia” (Êxodo 16.4-5).
Por que Deus não fez cair logo uma quantidade de maná para o mês inteiro? Não seria melhor para o planejamento familiar e a gestão dos recursos da sociedade como um todo? Bem, com certeza, ele poderia ter feito isso se o quisesse. O fato de ele não ter feito deveria nos levar a pensar nos motivos. Deus está disposto a realizar o milagre extraordinário que é fazer cair pão do céu, mas não quer que ajuntemos de um dia para o outro. A única explicação para isso é a que encontramos no próprio texto: “para que eu ponha à prova para ver se anda na minha lei ou não”.
Assim sendo, fica claro que conhecer e obedecer as leis de Deus é mais importante que a comida e a bebida. E, para os que conhecem bem o Deus que temos, não poderia ser diferente. Não temos dúvidas que de Deus conhece todas as nossas necessidades e tem poder para suprir cada uma delas ao seu tempo. O que não sabemos, as vezes, é se a nossa fome já ficou maior do que o nosso desejo de ouvir e obedecer à sua voz.
A necessidade de colher diariamente o maná era, na verdade, um grande privilégio, pois ao faze-lo os israelitas estariam contemplando a glória de Deus dia após dia. O texto bíblico nos diz que, quando Arão dava as instruções sobre como seria a coleta do maná, eles olharam para o lado e a glória do Senhor apareceu na nuvem. Em outras palavras, Deus veio ver de perto a entrega da cesta básica. Que privilégio!
Deus não nos criou para sermos como filhotes de sabiá que reagem desesperados, com os bicos abertos, aguardando que o alimento seja distribuído. Se fossemos julgar somente pela reação dos filhotes, diríamos que se o alimento não chagasse naquele segundo, eles morreriam de fome. Todavia, sabemos que as coisas não são bem assim. Parte dessa figura pode ser aplicada ao nosso relacionamento com Deus. Não fomos criados como filhotes de sabiá e, por essa razão, não deveríamos agir como tal; somos criaturas racionais feitas segundo a imagem de Deus. É esperado de nós que valorizemos mais o relacionamento do que o alimento; especialmente quando o provedor é ninguém menos que o criador dos céus e da terra.
3. Como reagimos quando nossas necessidades básicas são atendidas?
O modo como reagimos quando nossas necessidades são atendidas é determinante para sabermos se somos murmuradores. O relato bíblico nos diz que os israelitas “não deram ouvidos a Moisés, e alguns deixaram do maná para a manhã seguinte” (Êxodo 16.20). Imaginem a cena. Deus havia dado instruções específicas de como as coisas aconteceriam, Moisés e Arão repassaram cada uma delas ao povo e, no dia da primeira chuva de maná e da primeira revoada de codornizes, Deus se fez presente para assistir a entrega. Quando o maná caiu e as codornizes chegaram, eles reagiram como loucos, colhendo mais do que deviam e comendo mais do que conseguiam, como se nunca mais fossem receber o alimento diário.
Semelhantemente, nossa reação ao que Deus nos dá é determinante para sabermos se somos murmuradores. O descaso total com as instruções demonstrado na reação do povo revelou uma preocupação excessiva com o dia do amanhã, fazendo-os ceder à tentação de estocar o maná. Disso aprendemos uma importante lição: não deixe que a ansiedade com o amanhã lhe prive da alegria com aquilo que Deus lhe dá hoje.
Conclusão
Uma coisa que os israelitas provavelmente não sabiam e nós sabemos é que o maná apontava para algo maior. Quando Jesus, em uma ocasião, foi indagado por pessoas que lhe pediam um sinal maior do que o maná, sua resposta foi surpreendente:
“Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: não foi Moisés quem vos deu o pão do céu; o verdadeiro pão do céu é meu Pai quem vos dá. Porque o pão de Deus é o que desce do céu e dá vida ao mundo. Então, lhe disseram: Senhor, dá-nos sempre desse pão. Declarou-lhes, pois, Jesus: Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome; e o que crê em mim jamais terá sede” (João 6.32-35).
Para pessoas acostumadas a murmurar, nem mesmo Jesus basta. Um cristão que não se contenta mais nem com o próprio filho de Deus, o pão da vida, é alguém com o olho maior que a barriga.
Daniel Santos
Leia o artigo original em Semeando Ideias – Rev. Daniel Santos